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03/07/2020
As incógnitas do fim de um pontificado

As incógnitas do fim de um pontificado

quinta-feira, 2 de julho de 2020

A renúncia de Bento XVI será lembrada como um dos acontecimentos mais catastróficos do nosso século, porque abriu a porta não apenas a um pontificado desastroso, mas, sobretudo, a uma situação de crescente caos na Igreja. Mais de sete anos após o infeliz 11 de Fevereiro de 2013, a vida de Bento XVI e o pontificado do Papa Francisco estão inexoravelmente a chegar ao fim. Não sabemos qual dos dois acontecimentos precederá o outro, mas, em ambos os casos, a “fumaça de Satanás” corre o risco de envolver o Corpo Místico de Cristo, como talvez nunca tenha acontecido na história.

O pontificado bergogliano chegou ao fim, se não do ponto de vista cronológico, certamente do ponto de vista do seu impacto revolucionário. O Sínodo da Amazónia fracassou e a Exortação Querida Amazónia, de 2 de Fevereiro, foi a pedra tumular de tantas esperanças do mundo progressista, especialmente da área alemã. O Coronavírus, ou COVID-19, pôs definitivamente fim aos ambiciosos projectos pontifícios para 2020, dando-nos a imagem histórica de um Papa solitário e derrotado, imerso no vazio de uma espectral Praça de São Pedro. Por outro lado, a Divina Providência, que regula sempre todos os acontecimentos humanos, permitiu que Bento XVI assistisse ao colapso após a sua renúncia. Mas, provavelmente, o pior ainda está por vir.

Era lógico prever que, com a convivência de “dois Papas” no Vaticano, uma parte do mundo conservador, desgostoso de Francisco, voltaria o olhar para Bento, considerando-o o “verdadeiro Papa”, em oposição ao “falso profeta”. Embora convencidos dos erros do Papa Francisco, esses conservadores não quiseram seguir o caminho iniciado pela Correctio filialis entregue ao Papa Francisco a 11 de Agosto de 2016. A verdadeira razão da sua relutância está, provavelmente, no facto de que a Correctio destaca como a raiz dos desvios bergoglianos remonta aos pontificados de Bento XVI e de João Paulo II e, antes ainda, ao Concílio Vaticano II. Para muitos conservadores, por outro lado, a hermenêutica da continuidade de João Paulo II e de Bento XVI não admite fracturas e, como o pontificado bergogliano parece representar a negação desta hermenêutica, a única solução para resolver o problema é eliminar Francisco do horizonte.

O próprio Bento, dando a si mesmo o título de Papa emérito, continuando a vestir de branco e a conceder a bênção apostólica, teve gestos que parecem encorajar essa impérvia obra de substituição do novo Papa pelo antigo. O argumento princeps é, porém, a distinção entre munus e ministerium, com a qual Bento parecia querer conservar para si uma espécie de pontificado místico, deixando a Francisco o exercício do governo. A origem da tese remonta a um discurso de Mons. Georg Gänswein, de 20 de Maio de 2016, na Pontifícia Universidade Gregoriana, na qual afirmava que o Papa Bento não havia abandonado o seu ministério, mas tinha-lhe dado uma nova dimensão colegial, tornando-o um ministério quase-partilhado («als einen quasi gemeinsamen Dienst»). De nada adianta que Mons. Georg Gänswein, num comunicado ao LifeSiteNews, a 14 de Fevereiro de 2019, tenha reafirmado a validade da renúncia ao ministério petrino de Bento XVI, afirmando que «existe apenas um Papa legitimamente eleito, e é Francisco». A ideia de uma possível redefinição do múnus petrino já tinha sido lançada. E diante da objecção de que o Papado é uno e indivisível e não pode tolerar divisões no seu interior, a réplica desses conservadores é que é precisamente esse facto que comprova a invalidade da renúncia de Bento XVI. A intenção de Bento – dizem eles – era a de conservar o pontificado, supondo que o ministério pudesse dividir-se em dois; mas isto é um erro substancial, porque a natureza monárquica e unitária do Papado é de direito divino. A renúncia de Bento XVI seria, portanto, inválida.

É fácil argumentar que, se fosse provado que Bento XVI tinha a intenção de dividir o pontificado, mudando a constituição da Igreja, teria caído em heresia; e como esta concepção herética do Papado seria, certamente, anterior à sua eleição, a eleição de Bento XVI deveria ser considerada inválida pelo mesmo motivo pelo qual é considerada inválida a renúncia. Em nenhum caso seria ele o Papa. Mas estes são discursos abstractos, porque só Deus julga as intenções, enquanto que o direito canónico se limita a avaliar o comportamento externo dos baptizados. Uma célebre sentença do direito romano, recordada pelo Cardeal Walter Brandmüller e pelo Cardeal Raymond Leo Burke, afirma que «De internis non iudicat praetor»; um juiz não julga as coisas internas. Por outro lado, o cânone 1526, § 1 do novo Código de Direito Canónico recorda que: «Onus probandi incumbit ei qui asserit» (o ônus de fornecer as provas cabe a quem assevera). Há uma diferença entre indício e prova. O indício sugere a possibilidade de um facto, a prova demonstra a certeza. A regra de Agatha Christie, segundo a qual três indícios são uma prova, vale para a literatura, mas não para os tribunais civis ou eclesiásticos.      

Além disso, se o legítimo Papa fosse Bento XVI, o que aconteceria se ele, de um dia para o outro, morresse ou se, em vez disso, antes da sua morte morresse o Papa Francisco? Visto que muitos dos actuais purpurados foram criados pelo Papa Francisco e nenhum dos cardeais eleitores o considera um antipapa, a sucessão apostólica seria interrompida, prejudicando a visibilidade da Igreja. O paradoxo é que, para provar a invalidade da renúncia de Bento, se utilizam sofismas jurídicos, mas, depois, para resolver o problema da sucessão de Bento ou de Francisco, dever-se-ia recorrer a soluções extra-canónicas. A tese do visionário franciscano Jean de Roquetaillade (João de Rupescissa: 1310-1365), segundo a qual, na iminência do fim dos tempos, apareceria um “Papa angélico” à cabeça de uma Igreja invisível, é um mito espalhado por muitos pseudo-profetas, mas nunca aceite pela Igreja. Seria este o caminho que uma parte do mundo conservador tomaria? Parece mais lógico acreditar que os cardeais reunidos em conclave para eleger um novo Papa, depois da morte ou da renúncia ao pontificado do Papa Francisco, seriam assistidos pelo Espírito Santo. E, se é verdade que os cardeais poderiam rejeitar a influência divina, elegendo um Pontífice pior que o Papa Francisco, é também verdade que a Providência poderia reservar surpresas inesperadas, como foi para a eleição de Pio X ou de outros grandes Papas na história.

Aquilo de que precisamos é de um Papa santo e, antes ainda, de um próximo Papa. Com o título The Next Pope, saiu por estes dias um óptimo livro do jornalista inglês Edward Pentin, publicado pelo Sophia Institute Press (The Next Pope: The Leading Cardinal Candidates). O principal mérito desta obra de 700 páginas é lembrar-nos de que haverá um “próximo Papa” e oferecer-nos, através dos perfis de 19 “papáveis”, todas as informações necessárias para entrar na era pós-franciscana.

É necessário convencermo-nos de que a hermenêutica da continuidade fracassou, porque estamos a atravessar uma crise na qual nos devemos medir sobre os factos e não sobre as suas interpretações. «A inaceitabilidade desta abordagem – observa correctamente Peter Kwasniewski – é demonstrada, entre outras coisas, pelo sucesso infinitesimal que os conservadores tiveram em derrubar as “reformas” desastrosas, as tendências, os hábitos e as instituições estabelecidas na esteira e em nome do último Concílio, com a aprovação ou a tolerância papal».

O Papa Francisco nunca teorizou a hermenêutica da “descontinuidade”, mas quis realizar o Vaticano II na práxis e a única resposta vencedora a esta práxis reside na realidade concreta dos factos teológicos, litúrgicos, canónicos e morais, e não num estéril debate hermenêutico. A este respeito, o verdadeiro problema não será a continuidade ou a descontinuidade do próximo Pontífice com o Papa Francisco, mas a sua relação com o nó histórico do Concílio Vaticano II. Alguns conservadores querem eliminar o Papa Francisco através de sofismas canónicos, em nome da hermenêutica da continuidade. Mas se é possível acusar um Papa pela sua descontinuidade com o seu antecessor, por que não admitir a possibilidade da descontinuidade de um Concílio com os precedentes? Neste contexto, devem ser apreciadas as recentes intervenções sobre o Vaticano II do Arcebispo Carlo Maria Viganò e do Bispo Auxiliar de Astana, Athanasius Schneider, que tiveram a coragem de enfrentar um debate teológico e cultural que não se pode evitar. Este trabalho de revisão histórica e teológica do Vaticano II é necessário para dissipar as sombras que se adensam no fim do pontificado e também para evitar uma divisão que poderia colocar os bons católicos diante da escolha entre um Papa mau, mas legítimo, e um antipapa de melhor doutrina, ou “místico”, mas, infelizmente, ilegítimo. 

Roberto de Mattei     

Através de Corrispondenza Romana

Fonte:http://www.diesirae.pt/2020/07/as-incognitas-do-fim-de-um-pontificado.html?




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