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13/07/2014
A estrada e a luz, a conversão de São Paulo

A estrada e a luz, a conversão de São Paulo

13/07/2014

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A conversão de São Paulo é um acontecimento capital na história do cristianismo e do mundo. A mesma intensidade que Saulo dedicava à perseguição dos cristãos, Paulo dedicará à pregação do Evangelho entre as nações.

Por Daniel-Rops

Era num dia de verão, por volta do meio-dia. Escoltado por um corpo de guardas que lhe deram, para o auxiliarem na sua tarefa, Saulo, febril, inquieto, chegava à vista do oásis da Síria. Havia já uma longa semana que deixara a Cidade Santa, uma semana que caminhava ao longo de uma pista na areia, compreendidas nesse espaço de tempo as paradas obrigatórias para o descanso sabático. Tinha pressa de chegar a Damasco, de cumprir a sua missão, de cevar a sua ira. Nem o sol ardente, nem o traiçoeiro relento das noites, tinham podido demorá-lo.

Duas estradas conduziam de Jerusalém para Damasco. Uma atravessava de ponta a ponta a Palestina, pela Samaria e Galiléia, até Cesaréia de Filipe; depois contornava o Hermon e atirava-se em linha reta através das estepes. A outra, mais reduzida, descia de Siquém para Citópolís, passava pela cidade grega de Hipos, à beira do lago de Tiberíades, para, em seguida, tornar a subir em direção às pastagens do Bachan e Traconítida, além das quais voltava a reunir-se com a primeira. É preciso pensar que o itinerário pelas colinas da Palestina deveria ser de preferir ao outro, o qual obrigaria a caminhar demoradamente no vale do Jordão, onde, em julho e em Agosto, são freqüentes as temperaturas de 45°. Mas, mesmo nos pontos altos, o verão é áspero e rude, pois tudo ali morre mais facilmente que no inverno

Havia, pois, oito dias que Saulo marchava por sobre pedras e poeira, debaixo dum céu de azul cru. As gramíneas secas na terra das encostas deixavam ver uma pele áspera sobre um esqueleto de rochedos. Tudo se mostrava pardo, monotonamente pardo: os espinheiros da estrada, as casas das aldeias, os calhaus dos ouadi 1 secos, e até, sob o abrigo tênue dos olivais, a lã dos carneiros, cujo pêlo se confundia com o solo.
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(1) Ou oueds, palavra árabe designando os cursos de água da África e da Síria e os rios intermitentes do Saara (N. do T.).

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Enquanto caminhava, Saulo moía e remoia a sua fúria. “Nunca ninguém – disse Pascal – faz o mal tal cabalmente e tão alegremente, como quando o faz em plena consciência”. Estaria, acaso, alegre, o moço fariseu que ia a Damasco, para levar a cabo uma tão terrível missão? Mas, de que procedia conscienciosamente, estava ele bem seguro. A firme convicção de estar no trilho da verdade, misturava-se-lhe certamente no coração com o inquieto azedume da vingança e da má disposição; que contas pessoais ajustaria com esse Messias, a cujos fiéis movia perseguições? Poderia, ao menos, formular concretamente os seus motivos?

O que fizera em Jerusalém contra os Nazarenos não lhe bastava ainda. Caçá-los, denunciá-los, fazer prender alguns, aplicar a outros o castigo das varas, compelir os menos fortes a apostatarem – ele próprio o confessou: ultrapassar em violência todos os outros moços fariseus – não lhe parecia ainda suficiente (cf. At 8, 3; 22, 4; 26, 10-11; Gál 1, 13; 1 Tim 1, 13). Grupos de fiéis da nova doutrina constituíam-se fora da Palestina, nomeadamente nas comunidades judaicas da Síria; assim ele se propôs ir descobri-los e puni-los.

O Sumo Sacerdote a quem Saulo – “não respirando outra coisa senão ameaças e morticínios” (At 9, 1-2) – expôs o seu projeto, acolheu-o, evidentemente, muito bem. Quem era ele? Ainda Caifás, um dos mais tristes heróis do escandaloso processo de Jesus, que à força de cautela e de reptação diplomática conseguira manter-se no Pontificado dezoito anos e não foi destituído senão no ano 36? Ou algum dos seus imediatos sucessores, Jônatas que não conservou a mitra além de seis meses, ou Teófilo, eleito no começo de 37? Pouco importa. A ordem para a missão foi assinada, ordenando-se às Sinagogas de Damasco que a Saulo se entregassem os seus membros ligados a Jesus de Nazaré, para que, sob algemas, ele os conduzisse a Sião.

A coisa era ilegal, tanto em direito judaico como em direito romano. Sobre os membros dos Sinédrios locais das comunidades da Diáspora, o Sumo Sacerdote não tinha, em princípio, nenhum poder. Mas é inegável que era enorme o seu prestígio, e que, de tal circunstância, sabia ele abusar à maravilha. Quanto aos ocupantes romanos, esses não teriam, numa época normal, tolerado de nenhum modo que um pequeno rabino saísse do território confiado ao Procurador da Judéia para vir proceder a detenções em território da Síria, e isso nas barbas dos respectivos magistrados. Mas – e é este um dos argumentos para datar os fatos do ano 36, em que Pilatos, chamado a Roma, não tinha sido ainda substituído – a autoridade de ocupação apenas se encontrava, então, representada pelo administrador de Cesaréia e pelo poderoso mas remoto legado da Síria, Vítélio, que, de resto, fazia uma política de bom entendimento com as autoridades do Sinédrio. Atuando rapidamente, o golpe deveria ser certeiro.

Tudo contribuía, pois, para a pressa de Saulo. A febre subia lhe à fronte, na calmaria abrasadora da pista. Estava quase a atingir a meta. A sua esquerda, o Hermon, “O Primogênito das Alturas”, erguia, por debaixo do céu duro, o cume coberto de neve, esse cume em que Cristo transfigurado resplandeceu aos olhos dos seus. À sua direita, as colinas do Hauran eriçavam-se, fulvas e azuis, para as bandas da Ásia. Depressa apareceria o oásis, cinzento pelos plátanos, e verde pelos palmares. O ar deveria ser opaco, imóvel, pesado, como costuma ser nos desertos à hora do meio-dia.

De repente, uma luz vinda do céu refulgiu em volta dele, ultrapassando em intensidade a do sol. O viandante caiu por terra, ouvindo, então, uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” Titubeou: “Quem és tu, Senhor?” A voz replicou: “Sou Jesus de Nazaré, a quem tu persegues”. Aterrado e a tremer, o fariseu murmurou ainda: “Senhor, que queres que faça?” E a voz, inefável, respondeu: “Levanta-te. Entra na cidade, e lá saberás o que tens a fazer, pois que te instituí meu servidor e testemunho”.

Prodigioso acontecimento, de incalculável importância, sem o qual todo o futuro do cristianismo teria mudado de feição... É preciso acreditar que ele impressionou tanto o espírito dos coevos, quanto confunde o nosso, pois não é só uma vez, no capítulo 9, mas duas vezes mais nos capítulos 22 e 26, que o livro dos Atos dos Apóstolos o refere, e estes dois últimos, pela boca do próprio Saulo. Entre as três narrações, a identidade quanto à base é absoluta; as diferenças não existem senão nos pormenores: os companheiros de Saulo caíram também por terra? que perceberam eles exatamente do fenômeno? uma luz ofuscante? uma voz que proferia palavras incompreensíveis? É indiscutível a autenticidade do fato, que por diferentes vezes o Apóstolo, nas suas cartas, confirmará ainda por decisivas alusões (cf. 1 Cor 9, 1; 15, 3; Gál 1, 12-17). Na estrada de Damasco, ao sol do meio dia, Saulo viu-se, na verdade, defrontado por Jesus, ouvindo que o chamavam pelo nome.

Levantou-se do chão e titubeou. Sem dúvida que deveria ter soltado um grito. Já não via nada. Di-lo o texto dos Atos: Já não via nada “por causa dessa intensa luz”. Os médicos que estudaram esta súbita cegueira concluíram que ela não podia comparar-se com a motivada pelos golpes de sol saariano, a qual é de curta duração, ao passo que a de Saulo se deveria ter mantido durante vários dias. Compararam-na, porém, com a que se produz com o ofuscamento elétrico, e é devida a um choque excessivo de luz sobre a retina, implicando queimaduras superficiais da córnea e secreções de mucosidade purulenta; essa pode durar bastante tempo. “Ninguém vê a face de Deus, sem morrer....” asseverava a Bíblia: Saulo não morreu, por haver encontrado o Deus da vida; todavia, quem ia retomar a rota, era na verdade um morto, um homem morto por si próprio. Amparado pelos homens da escolta, Saulo entrou em Damasco, para ai esperar as ordens prometidas.

Damasco era então o que ainda agora é: o oásis maravilhoso que parece surgir do deserto inóspito, como uma flor paradisíaca da Árvore da Vida. As suas nascentes inesgotáveis haviam feito brotar uma vegetação variadíssima: plátanos, choupos, faias e salgueiros demarcavam os ribeiros e os frescos regatos; à sombra das palmeiras, as romãs, os damascos e os figos amadureciam em inúmeros cercados; por toda a parte a rosa e o jasmim misturavam os seus perfumes adocicados ao das tuberosas. O Ocidente e o Oriente, cruzando ali as suas estradas, tinham feito da cidade um dos centros onde as caravanas se detinham ao dirigirem-se ao Egito, à Mesopotâmia, à Pérsia, carregados de peles, de sedas, de sal ou de metais preciosos. Nesta poderosa cidade, na qual dez raças diferentes eram vizinhas, havia muito tempo que a colônia judaica era numerosa (Flávio Josefo fala de 50.000 almas), colônia essa de prósperos lojistas e de artífices. Do fundo da sua vermelha Petra, o rei, que mais ou menos dependia da cidade, o príncipe árabe Aretas, protegia-a.

Transposta a porta fortificada – que uma torre maciça guardava – o viajante encontrava-se numa avenida com a extensão de 1.500 metros e a largura de 30, toda bordada de pórticos de colunas coríntias, e cujo pavimento de lajedo se encontrava ladeado por passeios. Chamavam-lhe a rua “Direita”, rua que existe ainda, continuando a ser conhecido o seu antigo nome, ao lado do moderno Souq el Tawil – “extenso bazar” 2. Morava aí um judeu chamado Judas, a quem fora, sem dúvida nenhum, dada ordem para receber o enviado do Sumo Sacerdote. Podemos imaginar Saulo, acocorado em qualquer recanto do pátio ou da loja, abstrato, silencioso, recusando-se a comer e a beber, os olhos de cego abertos para a noite do milagre, pobre cativo nas mãos daquele que tão bem o tinha vencido.
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(2) Atualmente, o mercado chama-se Souq Medhat Pasha, em homenagem ao imperador otomano Medhat Passa, que o reformou (N. do E.).
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Fora na comunidade judaica que, por certo, se constituíra o primeiro núcleo de fiéis do Nazareno. Tal núcleo não deveria ser insignificante, pois atraiu as atenções desconfiadas dos chefes religiosos de Israel. Ananias era um dos seus membros a quem os Atos classificam de “discípulo” (9, 10), isto é, um daqueles que Saulo se propunha conduzir presos a Jerusalém. Era, diz ainda o livro (12, 18) um “homem pio, segundo a Lei”, ou seja, um dos primeiros partidários de Jesus, cujo tipo dominava ainda nessa Igreja muito primitiva, partidários esses que, embora batizados segundo a nova fé, permaneciam muito presos às observâncias da raça e à sinagoga, homens que se mostravam tanto mais judeus, quanto mais atentos se sentiam à palavra de Cristo. Bom, prudente, moderado, justo de coração e de vida, era por todos respeitado e considerado.

Ora Ananias teve uma visão. O Senhor apareceu-lhe e chamou-o: “Ananias!” Conforme se diz na Bíblia dos grandes anciãos em idênticas circunstâncias, respondeu: “Eis-me aqui, Senhor!” O visitante continuou: “Parte, vai à rua Direita e pergunta na casa de Judas por um homem chamado Saulo, que é natural de Tarso. Encontrá-lo-ás em oração, pois que ele acaba de ter igualmente uma visão: viu entrar um homem com o nome de Ananias, que lhe impôs as mãos para lhe restituir a vista”. Atônito por receber uma tal ordem, o prudente ousou replicar:

“Senhor, ouvi dizer a várias pessoas que esse homem havia feito muito mal aos teus santos, em Jerusalém. Ora se ele está cá, é porque recebeu mandado das autoridades e do Sumo Sacerdote, a fim de prender os que invocam o teu nome”.

Mas a voz misteriosa contestou ainda:

“Vai, porque este homem é para mim um instrumento escolhido, que levará o meu nome diante das nações, dos reis e dos filhos de Israel” (At 9, 10-15).

É admirável o encontro desse homem que se sente ameaçado, não só na sua pessoa mas também na sua fé e na sua esperança, e que deve ir levar a salvação àquele mesmo de quem pode esperar tudo, e do pior. O paradoxo cristão encontra-se aí inteiramente formulado, o paradoxo da caridade de Cristo, que São Paulo devia compreender tão profundamente e exaltar de um modo sublime; no momento em que o apelo decisivo ia soar para ele, era necessário que se sentisse melindrado. “Amar os inimigos, e perdoar aos que nos ofendem”: a mais essencial de todas adições do Evangelho, recebia-a Saulo pela própria voz do homem que momentos antes era ainda sua vitima eventual.

Ananias pôs-se, por conseguinte, a caminho. Entrou na casa de Judas e perguntou por Saulo. Lá estava ele, sempre prostrado, sempre cego, sempre incapaz de explicar o que se lhe desenrolava na alma, à qual, todavia, a visão levara a esperança. “Saulo, meu irmão, o Senhor, esse mesmo Jesus que te apareceu no caminho, enviou-me para que recobres a vista e fiques cheio do Espírito Santo”. Naquele mesmo instante caíram dos olhos de Saulo umas como que escamas, e ele recuperou a vista. Levantou-se; tomou alimentos; e as forças regressaram-lhe. Foi então que se batizou.

De tal modo se realizou aquilo que se tem chamado a conversão de São Paulo. Que tenha havido nele secretas investidas da graça, secretas inclusivamente para ele, que possam discernir-se determinados componentes que contribuíram para o profundo abalo psicológico da estrada de Damasco, isso tem apenas uma importância secundaria. A impressão que se colhe da leitura dos Atos, aquela mesma da qual São Paulo será obstinadamente testemunha, durante a vida inteira, é que um acontecimento fulminante o empolgou, quando ele se julgava ainda imbuído de convicções judaicas, e o mudou literalmente, de um só golpe.

A transformação foi nele radical e completa. O que havia odiado, passou, da noite para o dia, a adorar, e a causa que combateu com toda a violência, vai, igualmente com toda a violência, servi-la de futuro. Num segundo e na pista do deserto, Deus vencera o adversário e ligara-o a si, para todo o sempre.

Esse homem que a Luz prostrou no leito da estrada, vencido mas exacerbado pela própria derrota, na esperança mais profunda do seu coração, como não haveríamos de considerá-lo com emoção, e até – é preciso dizê-lo – com certa espécie de inveja? Saulo, Saulo de Tarso, mais pecador que todos nós, carrasco com as mãos manchadas do sangue dos fiéis, e que teve a sorte inconcebível de se encontrar em pessoa com Cristo, e de, pela sua própria voz, ser chamado pelo nome... Por que motivo foi assim? Porque teria sido esse homem designado? Está-se aqui no âmago do mistério paulino da graça, em que tudo é obscuro nos secretos desígnios da Providência e em que tudo, porém, conduz ao fim que é a decisiva Luz.

É para tal fim, é para essa Luz que, no futuro, Saulo vai pender. Cristo, que o venceu, vai mostrá-lo em todas as estradas do mundo, como seu cativo e seu escravo. E ele, Saulo, não terá horas bastantes em toda a sua vida para render o testemunho do Amor Àquele que o amara bastante para o ferir em pleno coração.

 

Fonte: “São Paulo, o Conquistador de Cristo”, Tavares Martins, Porto, 1952, págs. 49-60

Tradução: Jaime Napoleão de Vasconcelos

 

Visto em:http://www.quadrante.com.br/




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